Beira Meu Amor

A Beira foi o grande amor da minha vida. Recebeu-me com seis anos, em Novembro de 1950 e deixei-a, com a alma em desespero e o coração a sangrar, em 5 de Agosto de 1974. Pelo meio ficaram 24 anos de felicidade. Tive a sorte de estar no lugar certo, na época certa. Fui muito feliz em Moçambique e não me lembro de um dia menos bom. Aos meus pais, irmão, outros familiares, amigos e, principalmente, ao Povo moçambicano, aqui deixo o meu muito obrigado. Manuel Palhares

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quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Vamos brincar?


A cena passa-se no Jardim do Bacalhau da cidade da Beira em Moçambique, no ano de 1954.
- Então ao que é que vamos brincar hoje? – perguntou o Manel. - Ninguém dá ideias? Fala Zé, diz lá. Tens alguma ideia para agora?
- Eu proponho que comecemos pelos berlindes. Que acham? – disse o Zé.
- Boa ideia, já está muito calor e sempre podemos jogar com eles aqui debaixo das árvores do jardim. Eu trouxe de todas as qualidades e vocês? Querem ver? Olhem só para estas pilecas! Já viram estas cores?! Vejam estes berlindes. São maiores que as pilecas mas são também muito giros. E estes matulões?! Reparem só no seu colorido. Ah! Também trouxe esferas: grandes e pequenas. Vejam!
Alto aí Manel! – exclamou o Zé. – As esferas só podem jogar com as esferas, porque senão dão-nos cabo dos berlindes.
- Está bem, está bem. E então começamos pelo quê? Com as três covinhas, com o círculo ou com o atiça matulão?
Entretando, vinda da zona dos baloiços, tinham-se aproximado a Maria Manuel, com os seus 13 anos, já muito mais velha que nós que andávamos apenas pelos10 anos.
- Então crianças, que asneira é que se estão a preparar para fazer?
- Olha para ela, só porque já é grande pensa que é nossa mãe – retroquiu o Manuel.
- Eu só fiz uma pergunta. Ao que é que vão brincar?
- Estamos a pensar jogar com os berlindes aqui à sombra das árvores – disse o Zé.
- Berlindes, berlindes. Vê-se logo que são ainda miúdos. Se já fossem rapazes brincavam ao “Tic -Tac” ou ao “ Naigod”.
- Até parece que percebes alguma coisa desses jogos. Ora conta lá como é que se jogam – pediu-lhe o Cajó que entretanto tinha chegado.
- Então, o “tic-tac” joga-se com dois paus redondos: um mais comprido e outro mais pequeno. Faz-se uma cova no chão onde se coloca o pau pequeno até meio e com o pau grande bate-se nele de modo que ele ganhe altura e depois torna-se a bater nele com o pau grande de maneira que o pau pequeno vá parar o mais longe possível da cova. Em seguida conta-se com o pau grande quantas vezes ele cabe na distância que separa o pau pequeno da cova e assim se obtém a pontuação. E o “naigod” joga-se com uma bola de ténis e três latas vazias de leite condensado da Néstlé ou Bebé Holandês. Uma equipa tenta deitar abaixo as três latas que previamente se colocam umas em cima das outras e afastá-las o mais possível, enquanto a outra equipa tenta empilhá-las de novo e gritar “naigod”. Entretanto a equipa que deitou as latas abaixo tenta agarrar a bola e atingir-nos com ela e se o conseguir esse jogador fica fora de jogo. A equipa que tem que empilhar as latas tenta chutar a bola para o mais longe possível.- Nós estávamos de boca aberta com a sabedoria lúdica da Maria Manuel. Até que o Cajó lhe perguntou:
- Como é que tu sabes tanto sobre jogos de rapazes?
- Porque não sou idiota e criança como tu! Adeus meninos divirtam-se com esses jogos idiotas de berlindes – disse a Maria Manuel com um ar superior.
- Ouve lá sua peneirenta – exclamou o Zé, faíscando com o olhar a Maria Manuel. – Se calhar jogar ao “Ovo Podre”, ao “Lenço”, à “Macaca”, “À Semana”, “Às Rodas”, “Ao Ring”, não é jogar jogos idiotas?!
- O que tu queres é conversa. Se calhar andar por aí de pistola de fulminantes nas mãos a figirem que são “cowboys” e índios não tem nada de tonto! – exclamou a Maria Manuel, rindo-se e virando-nos as costas com uma gargalhada cristalina que nos deixou furibundos.


Manuel Palhares

Odivelas, 7 de Novembro de 2005.

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