Beira Meu Amor

A Beira foi o grande amor da minha vida. Recebeu-me com seis anos, em Novembro de 1950 e deixei-a, com a alma em desespero e o coração a sangrar, em 5 de Agosto de 1974. Pelo meio ficaram 24 anos de felicidade. Tive a sorte de estar no lugar certo, na época certa. Fui muito feliz em Moçambique e não me lembro de um dia menos bom. Aos meus pais, irmão, outros familiares, amigos e, principalmente, ao Povo moçambicano, aqui deixo o meu muito obrigado. Manuel Palhares

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sexta-feira, fevereiro 03, 2006

O Congresso - as consequências


Meus caros amigos,

Só quase ao fim de uma semana é que consigo estar de novo aqui em casa a falar convosco. Estou todo dorido e ainda debaixo do efeito de sedativos para as dores físicas e mentais que ainda me afectam. Portanto, se no decurso desta nossa conversa eu não parecer estar no meu perfeito juízo, dêem-me um desconto e pensem que eu não sou assim e que tudo isto é efeito dos remédios.
Mas afinal o que é que se passou comigo, estarão alguns de vós a perguntar, não é verdade? Eu conto, eu conto.
Como sabem a semana passada sonhei que tinha havido um congresso das diferentes comunidades moçambicanas, com um único ponto na ordem de trabalhos: associarem-se em União das Comunidades Moçambicanas, com o objectivo de ajudarem as crianças orfãs daquele país, de que dizem gostar tanto, matando-lhes a fome e ajudando-as na sua formação escolar.
Que mania temos, alguns de nós, em vir para aqui contar histórias, mais a mais um simples e inofensivo sonho, só com o objectivo de darmos nas vistas e beliscarmos os outros, já por estas andanças há mais tempo e instalados no cavalo do protagonismo que houveram por bem terem o exclusivo.
Nem calculam o martírio que foi para mim esta semana logo desde a manhã de segunda-feira.
Ao sair de casa, para a bica da manhã, já cá tinha à porta uma pequena multidão
furibunda, constituida por alguns dos elementos que mencionei no meu sonho e que, de pau na mão, olhava para mim chispando. Entre os mais agitados estavam pessoas que por várias vezes me tinham manifestado a sua empatia, a sua simpatia, o seu companheirismo, a sua amizade e alguns até que quiseram criar comigo laços virtuais “ familiares”. Dos que falavam comigo pelo MSN-Messenger, pelo Skype e me pediram o número do telefone por e-mail e, não tendo eu satisfeito o seu seu pedido, o foram conseguir através do serviço de informações do meu servidor. Arranjaram-no e telefonavam-me para longas conversas nas quais o assunto, invariavelmente, ia acabar nas questões e pessoas das diferentes comunidades. E diziam-me, com a ingenuidade dos que substimam a inteligência alheia – isto para não lhe chamar outra coisa – que não gostavam de A, B, ou C, porque não lhes respondiam às mensagens, porque tinham a mania, porque eram elitistas, porque eram vaidosos, porque lhes respondiam de forma jocosa, enfim queixas e queixas que revelavam uma incapacidade adaptação ao relacionamento social, infantil e quase autista. E eu ia-lhes dizendo que via as comunidades como um divertimento e não como um aborrecimento e quando me cansasse de infantilidades, pura e simplesmente abandonava-as. Pois é verdade, eram estas últimas pessoas, as minhas “ amigas ” que demostravam maior fúria, maior intolerância.
- Ali está o gajo – ouço gritar logo ao sair da porta.
- Olá amigos, o que se passsa – balbuciei eu espantado por os ver e conhecer, pois até àquela altura eles eram apenas virtuais.
- O que se passa? – falou um deles. - Ainda tens a lata de perguntar o que se passa, meu merdas? Então tiveste o desplante de me pores ao lado deste gajo, lá na merda do teu sonho?
- Mas, mas que mal é que tem isso? – disse eu.
- Que mal é que tem? Ainda perguntas? Então tu não sabes que já fizemos parte do mesmo site? Éramos os dois gerentes, tratávamo-nos por irmãos. Ele era cunhado da minha mulher e eu era tio dos filhos dele. A mãe dele era avó dos meus filhos e minha mãe também. O meu pai era sogro da mulher dele e tudo. Depois o gajo começou com manias de que me dava ordens e queria o protagonismo todo para ele e tivemos que nos chatear. Chamei-lhe tudo nos e-mails que lhe mandei e ele fez-me o mesmo. Quer dizer, andámos à porrada virtual. Depois cada um de nós criou a sua comunidade e dividimos os parvos que para lá escreviam umas coisitas e punham lá uns bonecos entre nós. Uns tomaram o partido dele, outros o meu. E é assim que a maioria da malta fez nas outras províncias. Por isso há mais de cinquenta sites de comunidades de amigos de Moçambique, para não falar nos blogs. Isto da globalização serve para termos liberdade de expressão e cada um ter o seu protagonismo, nem que fiquemos a falar com meia dúzia de pessoas, ou até a respondermos a nós próprios. E queres tu, na porcaria do teu sonho, vir-nos reunir de novo numa União?! Tu não percebeste a trabalheira que tivemos para nos dividirmos, pois não? Começamos por ameaçar que saíamos por três ou quatro vezes. Depois pedimos por e-mail ou telefone, aos que nos seguem como cordeiros, que se expressassem a nosso favor, no site da comunidade, pedindo-nos para não sairmos e os membros que ainda são ingénuos ou novatos nestas coisas, pedem-nos também muito para não sairmos. Dizem-nos que somos o Sol e o sal da Terra e essas cenas afagam-nos o ego e dão-nos publicidade para o blog ou para o site que já tínhamos intenção de vir a criar. Não é muito ético e moral, mas neste país onde quem nos governa faz o mesmo ou pior que importa isso?
E mais. Vais comer porrada também porque escreveste o meu nome depois dos nomes de gajos sem relêvo nenhum que gerenciam comunidades que quase não põem lá nada durante a semana. Então tu não sabes que a minha comunidade é mais importante e que devias ter escrito o nome da minha primeiro?! E outra coisa ainda. Que merda é essa de fazeres parte de todas as Comunidades de Moçambique que estão na net? Andas a ver num lado para ires levar para outro? É, é isso? Tu não sabes que só deves pertencer a uma comunidade e que não deves andar a escrever nas outras? E que deves subserviência à gerência, a quem a manipula, ou por trás de quem ela se esconde como gazelita assustada? Que deves ter cuidado com o que editas e que se fosses sensato, telefonavas primeiro a perguntar se gostávamos do que ias publicar? Os outros, os dos outros sites, são o inimigo a abater. Não prestam e estão sempre sem razão. Só nós é que temos a verdade absoluta!
- Não é nada disso – retorqui eu espantado, confuso e atordoado, por não me ter apercebido haver tantos indivíduos que se diziam saudosos daquela terra e da sua gente e que tinham uma forma tão singular de demonstrar gostar dela, gladiando-se com problemas tão pequeninos, como se eles tivessem parado no tempo e ainda pequeninos fossem. - Bom, mas pelo que vejo, já resolveram as coisas entre vocês. Estão aqui juntos de novo. Fizeram as pazes. Alegro-me. Ao menos o meu sonho sobre o congresso serviu para vos unir de novo – exclamei eu.
- Unir, uma porra! Continuamos a odiar-nos! Só nos reunimos hoje para vir até aqui dar-te no lombo, por lá, na porcaria do congresso do teu sonho, teres escrito que na mesa da assembleia geral estávamos sentados um ao lado do outro. Por causa disso, por tu falares em nomes que alguns de nós odiamos e os escreveres no mesmo texto ao lado do nosso, os gajos que se diziam teus amigos não te perdoam. Outros resolveram criar mais novas comunidades, para sairem daquelas em que publicaste a porcaria do texto, com a porcaria do sonho, com a porcaria da ideia do congresso. Mas quem tu pensas que és?
- Mas – ainda tentei eu dizer...
Meus amigos - os que o não forem que não se ofendam por os considerar a todos como meus semelhantes na medida da vossa condição humana - só sei que acordei
passados dois dias no hospital, todo partido, pela coragem daqueles que embora não gostando uns dos outros, gostavam agora ainda menos de mim, por os ter reunido num sonho que tinha como objectivo ajudar Moçambique.
Recebi também, durante a minha estadia no hospital, muitas manifestações de simpatia e tolerância da parte de muitos membros das diferentes comunidades que felizmente não são fundamentalistas e não se comportam como animais acossados, com medo de admitirem aos outros o direito à diferença e ao seu próprio ego e lutam todos os dias para tirarem este país da depressão quase colectiva em que vive, com o seu exemplo de comportamento social eticamente exemplar.
O que vos escrevo está ficcionado, claro, mas não pensem que é só pura invenção. Por muito que vos custe a acreditar, embora apenas no espaço cibernético, algo de parecido se passou. Tenho tudo arquivado. E não foi com crianças de infantil ou primária, foi com adutos para cima dos quarenta, alguns para lá dos cinquenta e outros ultrapassando já os sessenta.
Digam-me, meus caros amigos, fui eu que creci e não devia, abriram-se as portas do manicómio, estou louco, ou não se deve dizer que o rei vai nu?
Fiquem bem e até ao meu regresso depois da minha convalescência.
Um abraço para todos mesmo para os que não gostam de mim e me bateram.


Manuel Palhares

Odivelas, 20 de Novembro de 2005.

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