Beira Meu Amor

A Beira foi o grande amor da minha vida. Recebeu-me com seis anos, em Novembro de 1950 e deixei-a, com a alma em desespero e o coração a sangrar, em 5 de Agosto de 1974. Pelo meio ficaram 24 anos de felicidade. Tive a sorte de estar no lugar certo, na época certa. Fui muito feliz em Moçambique e não me lembro de um dia menos bom. Aos meus pais, irmão, outros familiares, amigos e, principalmente, ao Povo moçambicano, aqui deixo o meu muito obrigado. Manuel Palhares

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domingo, janeiro 29, 2006

O Senhor Doutor Blanche

Filho de uma sueca e de um francês que se conheceram no Porto, o Senhor Doutor Blanche aí nasceu e aí estudou. Inteligente, aprendeu com os pais a democracia, a tolerância e uma abertura de espírito invulgar para a época. Fez a sua formação num Porto liberal e aderiu aos ideais da Primeira República. Profissionalmente, licenciou-se em germânicas e seguiu a carreira universitária, chegando ao seu topo, a professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Era da sua autoria a que era considerada a melhor gramática de alemão editada em Portugal. Depois da sua morte, houve editoras que solicitaram à sua viúva a reedição da gramática.
Como muitos outros portugueses o Sr. Dr. Blanche não vendeu a sua alma ao Dr. Salazar e foi deportado para Moçambique, para a cidade da Beira, juntamente com a mulher e mais os seus sete filhos. Isto nos fins da década de trinta. Muitas dificuldades passou a princípio mas como era um homem prático resolveu abrir um colégio. Juntamente com os filhos mais velhos pôs mãos à obra e o colégio foi um sucesso numa terra onde, para além do ensino primário, a continuação da formação escolar estava entregue a religiosos.
Moçambique foi sempre uma miscelânea de multiculturalidade – tema sobre o qual, hoje em dia, está muito na moda falar – e a Beira não era excepção. Lá, com os africanos e os portugueses, conviviam, com as suas escolas, igrejas, centros culturais, desportivos e de lazer: espanhóis, italianos, ingleses, alemães, sul-africanos, gregos, indianos e chineses. Para além de toda a miscigenação que os portugueses sempre foram tão hábeis em fazer... Na generalidade, os elementos destas colónias tinham uma boa situação financeira e queriam que os seus filhos estudassem para além do ensino primário. Porém, não lhes agradava muito que os filhos frequentassem os colégios religiosos portugueses. Assim, o colégio do Sr. Dr. Blanche, com um director democrata, republicano e ateu, era o ideal para a continuação da formação escolar dos seus filhos. E assim aconteceu durante uns anos... Mas, mesmo lá longe, Salazar, através da “sua” P.I.D.E., mandou-lhe fechar o colégio. A família que entretanto tinha crescido com o casamento dos filhos e o nascimento dos netos, encolheu-se, apertou-se, compartilhando as mesmas casas, tentando sobreviver. O Sr. Dr. Blanche não desistiu. Com a mulher e os filhos solteiros, alugou uma casa e passou a viver de explicações com muito êxito.
Eu conheci o Sr. Dr. Blanche logo que cheguei à Beira. Conheci-o em casa de um dos seus filhos, de quem o meu pai era amigo e do qual tinha sido colega no Instituto Industrial do Porto. Ora acontece que quando o meu pai conseguiu alugar a nossa primeira casa na Beira, coisa difícil em 1951, passámos a ser vizinhos do Sr. Dr. Blanche: uma parede dividia as nossas salas de estar, um muro de cinquenta centímetros separava os nossos jardins. Os meus pais ficaram muito contentes porque viam no Sr. Dr. Blanche e Esposa uns segundos pais. E eu uns avós... Por essa altura eu fiz os sete anos e fui frequentar a primeira classe da instrução primária, no Colégio Nossa Senhora dos Anjos. Como o nome deixa adivinhar – um colégio de religiosas. Quando fui para o colégio, eu já rezava algumas orações ensinadas pela minha mãe mas no colégio passei a frequentar a catequese e a preparar-me para a primeira comunhão. E foi a partir dessa altura que eu e o Sr. Dr. Blanche passámos a ter as nossas primeiras divergências – um miúdo de sete anos e um homem de quase setenta! Ele com o seu cabelo branquinho, os olhos vivos e um sorriso bondoso, ria que se fartava quando me arreliava:
- Olha lá, ó Manuelzinho! Conta-me cá o que é que aquelas velhas, vestidas com lençóis te ensinam!
- Não são nada velhas! – retorquia eu arreliado – e não são lençóis, são hábitos!
- Ah! São hábitos?! E que te ensinam essas beatas para além de rezar: “Nosso senhor rilha o osso!” e “Avé Maria, lava os pés em água fria!” ?
- Ó Pierre! Não arrelies o menino! Anda cá Manuelzinho! Anda cá comer uma fatia do bolo que eu acabei de fazer – exclamava a sua doce Albertina.
Eu, rubro de cólera, quase a explodir:
- Vou fazer queixa à minha mãe!
E ele ria, ria até às lágrimas. Depois abrandava o riso, punha-se sério, parecia até ficar triste e falar mais para si do que para mim:
- Ó Manuelzinho! Como era bom que existisse deus! Não esse Deus prepotente, injusto, vingativo e cruel de que falam as escrituras. Mas outro diferente, realmente omnipotente e omnisciente, para endireitar isto cá em baixo...
Ficava por uns segundos pensativo mas voltava-lhe depressa aquele brilho ao olhar:
- Vai Manuelzinho, vai ter com a Albertina que está à tua espera para comeres o bolo – dizia ele afagando-me os cabelos.
Inteligência fina e rapidíssima tinha o Sr. Dr. Blanche. E sempre e acima de tudo amante da liberdade: da liberdade de pensamento, da liberdade de opinião, da liberdade de expressão, da liberdade “tout court”. Até o seu cão daquela altura, com quem eu brinquei, se chamava Ipiranga! E a propósito do cão Ipiranga...
- O que é que queres rapaz? – perguntou o Sr. Dr. Blanche ao empregado de uma vizinha.
- Senhor Doutor, a minha Senhora está a dizer para o senhor Doutor não deixar o Ipiranga ladrar, porque o menino está a dormir.
- Olha rapaz, vai dizer à tua Senhora, que eu disse, para ela não deitar o menino quando o cão está a ladrar!
Outra vez, num jantar de cerimónia, uma senhora endinheirada, sem grande instrução mas cheia de vontade de protagonismo, virou-se para ele com a taça de champanhe na mão e exclamou:
- Senhor Doutor! À saúde dos que querem mas não podem!
Respondeu-lhe prontamente o Sr. Dr. Blanche:
- Eu, minha Senhora, saúdo àqueles que podem mas não sabem!
Era assim este grande Homem e a sua adorável Esposa. Sem nunca vergar a espinha, foi ensinando aos seus alunos e explicandos, a rigidez de carácter, a força da palavra e a alegria da liberdade.
Os seus filhos estabeleceram-se, tiveram sucesso e sempre mimaram muito aqueles pais tão singulares. Quase todos os seus netos se licenciaram. São pessoas inteligentes, profissionalmente realizadas e com a ética nos genes.
O Senhor Doutor Blanche chegou ao fim da sua vida deitado na sua cama e rodeado por familiares e amigos. Eu também lá estive com o meu pai. Tinha doze ou treze anos.
A sua doce Albertina, que em determinada etapa da sua vida, já depois da morte do marido, conseguiu ultrapassar um AVC e três semanas de coma, voltou a viver a vida com alegria e rodeada de muito amor. Ainda regressou a Portugal, ao fim de quase quarenta anos, e cá viveu quase até aos cem anos.


Manuel Palhares

Castelo Branco, 6 de Agosto de 2005.

* Os nomes são fictícios para manter a confidencialidade da família “Blanche”.

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