Beira Meu Amor

A Beira foi o grande amor da minha vida. Recebeu-me com seis anos, em Novembro de 1950 e deixei-a, com a alma em desespero e o coração a sangrar, em 5 de Agosto de 1974. Pelo meio ficaram 24 anos de felicidade. Tive a sorte de estar no lugar certo, na época certa. Fui muito feliz em Moçambique e não me lembro de um dia menos bom. Aos meus pais, irmão, outros familiares, amigos e, principalmente, ao Povo moçambicano, aqui deixo o meu muito obrigado. Manuel Palhares

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terça-feira, janeiro 31, 2006

O Primo Armando - I


Primeira parte


Hoje vou falar-vos de um ser humano singular – o primo Armando.
Começo por vos contar como é que o primo Armando era o primo Armando. É um pouco sinuoso e complicado explicar como é que o primo Armando era o primo Armando. O primo Armando era filho de um director bancário da sede do Banco Borges e Irmãos no Porto – o primo Mário Morais, sobrinho do grande médico, cientista e investigador português, o psiquiatra Júlio de Matos. Após o seu divórcio, o pai do primo Armando que tinha ficado com a custódia dos filhos, matriculou-os num colégio do Porto, cuja directora era uma prima direita da minha avó materna – a prima Irene. Acontece que o pai do primo Armando e a directora do colégio, engraçaram um com o outro e resolveram casar. Assim a prima Irene, a directora do colégio, passou também a ser a madrasta de cinco dos seus alunos: o primo Armando e as suas quatro irmãs. O primo Armando era o mais velho. Dito tudo isto de outro modo, uma prima da minha avó materna, a prima Irene de Almeida Lucas, casou-se com um homem divorciado que tinha cinco filhos e que era director da sede do Banco Borges e Irmão na cidade do Porto. Assim ficou mais fácil, não ficou?
Do casamento da prima Irene com o primo Mário, nasceu uma menina, a prima Roxinha, que era prima da minha mãe e irmã, por parte do pai, do primo Armando e suas irmãs. Eu avisei que ia ser sinuoso e complicado explicar tudo isto, mas acho que está razoavelmente explicado. Consanguineamente, o primo Armando não era nada à minha mãe, mas ele, o pai e as irmãs passaram a ser primos sem o serem.
Quando o pai se casou de novo, o primo Armando teria os seus catorze anos. Foi crescendo, foi à inspecção militar e aos vinte e um anos estava a cumprir o serviço militar em Vila Real. Aí conheceu uma transmontana loura, de olhos esverdeados, linda de morrer – a prima Aninhas. Apaixonaram-se, casaram e tiveram um filho. Entretanto, o primo Armando, que tinha a carreira profissional assegurada no Porto, dado o estatudo profissional e social do pai, resolve oferecer-se para um comissão militar em Timor. Parte em 1943 em plena 2ª Guerra Mundial. Já nessa altura tinha as suas convicções políticas. Ia lutar pela liberdade dos povos oprimidos, pela injustiça social.
Regressa doente ao Porto, depois da guerra acabar, em 1945, e depois de uns meses de convalescência de doenças tropicais, sendo a pior delas a Malária, começa a trabalhar. Mas, uma vez pelo oriente longínquo em que esteve, como foi a sua estada em Timor, o Porto já não lhe dizia muito, prendia-o, sufocava-o. Assim sendo, sabe de uma vaga em Lourenço Marques, para os Caminhos de Ferro de Moçambique, concorre e em 1948 lá vai ele, com a mulher e o filho, para Moçambique. Sempre trabalhou no edifício da praça Mac Mahom até 1975, quando se reformou como Inspector Superior dos Caminhos de Ferro de Moçambique, já próximo da independência da colónia portuguesa. Preparava-se para regressar a Portugal, para viver, desafogadamente, da sua reforma. Mas voltemos atrás, aos tempos em que jovem, com espírito inquieto, sedento de tudo o que era cultura, lia loucamente e consolidava ideais políticos, primeiramente já absorvidos num Porto que sempre foi liberal. Então, depois de já ter estado em Timor, em Moçambique sempre o chocou a desumanidade e injustiça social que o colonialismo “cantando espalhava por toda a parte”. Não se podendo conter, emitia opinião, intervinha onde não se devia meter e tinha problemas profissionais e com as autoridades policiais e políticas da colónia. Cá em Portugal, as influências do pai e do tio-avô, o psiquiatra Júlio de Matos, iam-no aguentando no emprego, fora da prisão e de um provável degredo para a Índia ou Timor, neste caso obrigado, por castigo, e não por sua livre iniciativa.
Em 1953, a família vem de licença graciosa a Portugal. O pai, ainda no activo, tenta de novo convencê-lo a ficar e ir trabalhar para o banco. Mas ele, que entretanto também já era pai de uma linda menina, regressa a Moçambique acabadas as férias, em 1954. As suas ideias anarco-sindicalistas estão mais aguçadas que nunca. No Porto saciou a sede de cultura que trazia após aqueles cinco anos em Moçambique e abasteceu-se de toda a espécie de livros para levar para aquela colónia.
Lourenço Marques, como capital, tinha já a sua elite social e intelectual. Por lá andavam Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Dr. Barradas, José Craveirinha, Gilherme de Melo, Malangatana e outros de menor relevo, mas que formavam um núcleo intelectual ainda em incipiente formação, mas já com consciencialização cultural, social e política. Depois, havia ainda o núcleo do Cine-Clube também em formação. Enfim, formava-se em Lourenço Marques um grupo de homens novos que se interessava por política, por literatura, por arte, por cinema e que começava a tomar consciência própria e a fazer a ruptura com o passado.


Manuel Palhares

Odivelas, 24 de Setembro de 2005.

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